domingo, 12 de agosto de 2012

Cotidiano de Maria

    Maria perdeu seu sorriso, e dele ela vivia. Não houve aviso, muito menos abrigo para a vida que daí viria. Seus jovens ciganos, com seus 15 anos, mal falar podiam. E agora Maria? - perguntava a vizinha. Seu dono fugira, tudo do pouco levara, sobrara apenas quentinha que a vizinha doara.
    Mas não desista Maria, o dia apenas começara, a barriga que mais uma vez crescia deve ser motivo para nova alegria. Devota que é, sorria sem mostrar os dentes, pensava na vinda da nova boca, do novo presente. Haveria comida para aquele contingente? - Calculava Maria, contando vida por vida e projetando morte aos piores filhotes.
    Tristonha que ia, com rebanho mais leve, Maria sofria sem direito a pileque. Porém, ainda assim seguia, sem nem saber que sofria, ela apenas não entendia: ''Muié sem macho é gado sem dono. Coisa boa isso não daria''-  ela sempre dizia. No entanto, nunca desistia, creu todos os dias no retorno de sua alegria, no término de sua dolorosa carestia. O retorno que nunca ocorreria mantinha-se nos sonhos de Maria: ''Ah, ele há de retornar! Para meu rebanho alimentar, para a minha vidinha contornar. Esses meus sofrimentos têm de acabar.''
     Mas não sabia Maria que sua vida era poesia, achava o viver sinônimo de melancolia. Ai Maria, mal sabe que su'alma em breve ressurgiria. Seu vil dono de seus sonhos sumiria, e os sonhos de mãe, de mulher se tornariam.
    Para isso, um tanto demoraria, até lá a barriga esvaziar-se-ia. Pré natal Maria nem conhecia, a porta do SUS era a única que se abria, no qual, sob um risco enorme,ela se internaria. Sem poder ter anestesia, através de enfermeiro operaria. Mas não temam, por sorte, destino ou magia, agora existiam duas Marias. Maria-sem-dono e Maria-sem-pai, unidas no sofrer e no nome, Marias sem presente, Marias sem futuro. Viviam tangendo o morrer, morriam sem muito poder conhecer.
     Sem creche e sem leite, Maria-sem-pai acompanhava a mãe no batente, enquanto o resto do rebanho era taxado de delinquente. Muito orgulho ela tinha, contudo, daqueles filhos eloquentes. Pois convenciam muitos a passar-lhes os pertences. Maria temia se seus argumentos não fossem suficientes, sofria pela chegada deste dia iminente.
     Não demorou, e o primeiro foi pego de repente. Maria, ainda sem alforria, aquela fiança nunca pagaria. O pouco de vida restante desabou em um estante. Maria, não obstante, perdeu a alegria, o trabalho logo a demitira e agora fora fome que o rebanho sentira.
     Maria ficou um tempo em agonia, observava seus filhotes chorando, patas abertas implorando...ela teve que se transformar, haviam muitas bocas a alimentar. Então Maria pôs-se a andar, para aprender a labutar. Mas labuta que alimente para Maria era excludente, e, não por acidente,em pouco tempo o lar de Maria não mais lhe pertenceria.
      Pobre Maria, mendiga se tornaria, de moeda em moeda seu rebanho comeria. Mas, ''E agora Maria?'' - lembrava da pergunta de sua vizinha. Fardada a morte lenta, Maria disse não. Quisera deixar de esperar, esquecera completamente de seu dono, percebera que não podia ser apenas mãe. Maria precisava tornar-se mulher, queria tornar-se mulher.
      Levantou, conversou e conheceu o que nunca pudera conhecer. Passou um período a apenas aprender e, claro, a alimento receber. Maria aprendeu a conjugar, vivia agora a ''ocupar'', e no pretérito imperfeito foi-se o ''acatar''. Agora mulher, vivia a lecionar, para Maria-sem-pai esse caminho também trilhar. Futuro ainda não tinham, presente persistia árduo, mas agora Maria, que havia perdido o sorriso, já o tinha mais uma vez. Era um sorriso diferente, mais vívido e melhor que o de outras Marias. Tristes Marias, sem brilho, com donos. Marias vazias, sem vida, sem planos...vivendo dos sorrisos, que sorriem por engano.