Certa vez, na cidade onde as sombras não se moviam, uma dessas sombras, antes imóvel, inicia uma caminhada rumo a vida. O caminho seria árduo e incerto, a própria sombra já o sabia, porém não havia palavras capazes de fazer a relutante sombra mudar de opinião, pois esta já estava decidida,desdenhou de sua imobilidade, e foi-se descansar no canto mais sombrio de sua cidade sem luz. Esperou o amanhecer mais próximo, e ao pairar do primeiro raio de sol, a sombra já o havia avistado, aquilo a atingiu como o mar em sua primeira vista, reluziu tal qual a mais pura das esperanças humanas,e a convidou para gozar de sua liberdade.
Sentiu-se pela primeira vez livre, longe das outras sombras que fizeram-lhe companhia pela vida toda, mas ainda havia um ultimo encontro, e não havia como evitá-lo. É verdade que a sombra queria mudar-se de realidade, mas suas antigas companheiras, eram sim, muito queridas, e sua ida causou um ardor imenso, havia de se despedir deles.
Ao passar pela sua cidade, pela ultima vez, avistou a considerada mais sábias das sombras que ali morava, e inclusive a mais querida pela que estava a se despedir. Foram poucas palavras, alguns gestos, e um conselho à sombra retirante, foi ele ‘’enquanto ainda lhe há muito horizonte pela frente, as flores parecem ser muito belas,mas quando se está no que antes era horizonte, a decepção tende a murchar nossas flores’’ e finalizou com um: ''não permita que a ganância lhe faça passar por isso''. após esta fala da sábia sombra, enfim, começou sua caminhada, sem antes de ouvir das várias outras sombras da cidade desaprovação a sua atitude, a tirania se manifestava sob a forma de preocupação,e os autores dos comentários mal sabiam do quão tiranos estavam sendo, pois estavam atrás da maquiagem do senso comum e como em nosso mundo, as sombras também haviam suas mentes diminuídas por este, impregnando a mente da sombra prestes a começar sua caminhada.
Foi-se a cidade natal, o sol parecia despojar-se na nova visão da sombra, e claro, esta não pode não se permitir deleitar-se com tal fato. Neste momento esquecia completamente das vozes em sua cabeça, diziam elas ‘’há muitos riscos, tens sua vida segura aqui em nossa cidade, indo para a vida pode ocorrer-lhe de tudo, e terás invariavelmente de morrer’’. Fazia sim, certo sentido, mas a sombra não via nenhum gozo na pacata e segura vida de sombra imóvel, estava ávida por emoções, por riscos e pelo que certo dia ouviu, da boca de algum dos viajantes que passavam por sua cidade... do amor.
Continuando sua caminhada, estando lá pelo meio do caminho, a sombra encontrou mais um grupo de viajantes, estes, por sua vez, voltavam do destino visado pela sombra, ao deparassem com ela parecia que seus antigos companheiros de cidade se manifestavam naquele grupo, tamanho dissabor mostrado por eles pelo que encontraram na vida. O desgosto era tão grande que, ao verem a sombra no caminho que tanto os havia deixado indignado, não puderam deixar de alertá-la, ou melhor, tentar poupá-la daquilo tudo. Urgiram assim que se aproximaram:’’ Você! Estás indo para a vida? Não vá, és por demais terrível, não vale a pena, a felicidade é escassa demais comparada com a tristeza que reina por lá, veja só quantos estão voltando meu jovem, não caia na mesma ilusão que nós, a vida não vale a pena...’’ e a sombra atordoada por tudo aquilo, pois já não eram mais seus antigos companheiros de cidade que o diziam aquilo, aqueles haviam sim, tido a experiência da vida e pelo jeito não os agradou nem um pouco, após aquilo, ela não pode deixar de balançar, mas apesar de estar perdida saiu-se da forma mais natural possível de sua boca o que mais lhe gerava expectativa, disse : ‘’ mas... e o amor? Não é sublime como o contam? Não os deixou no maior dos estados de graça? Anseio por encontrá-lo assim que chegasse por lá, não podes ser tão ruim assim...’’. Após toda essa demonstração de esperança, o grupo que voltava parecia tentar dizimar toda esta com suas palavras: ‘’Garoto, o amor é a maior das fraquezas humanas, ele te deixa cego e no final das contas te destrói de tal forma que vai preferir poupar-se de algum dia já haver vivido’’.
Tudo pareceu dissolver-se para a sombra por aquele instante, esperava de alguma forma um alento, algo que contradissesse o que ela acabara de escutar, mas parecia que isso não iria ocorrer. Desiludida, clamou por alguma opinião diferente, através do grupo de viajantes que estava a sua frente, e todos pareciam consentir com a constatação daquele que havia falado.
A sombra parou, pensou, hesitou em acreditar, mas havia de admitir que pelo jeito não valeria a pena mesmo, agradeceu as palavras dos viajantes e disse que deveria desistir sim, só teria de descansar um pouco naquele ponto onde estava, para depois regressar a sua cidade, os viajantes entenderam e se despediram desejando boa sorte e se desculpando pela desilusão que causaram, porém segundo eles mesmos, algo que pouparia a jovem sombra de sofrimentos piores.
O adormecer daquele dia foi o mais pesado de todos, os pensamentos conturbavam cada vez mais a sombra, que pedia de alguma forma alguma resposta, humana, divina que seja, era relutante no seu desejo inicial, mas parecia, naquele momento, tender a acreditar no que os viajantes lhe falaram. Momentos após acordar, enquanto preparava-se para ir embora e a desilusão assolava-lhe por completo, aproximava-se um único viajante. Este, por sinal,possuía alguma semelhança com alguns dos integrantes do grupo anterior, o que foi justificado, com a primeira palavra proferida pelo viajante: ‘’ Você viu algum grupo de viajantes passando por aqui meu caro? Haviam nele amigos e entes dos mais queridos por mim, estavam todos desiludidos com a vida, preciso fazê-los voltar’’ A sombra sentiu um ar de esperança naquilo tudo, ainda mais se tratando no ar gracioso do viajante que lhe falava agora, mostrava um encantamento, perguntava-se a sombra se aquilo era resultado do amor, mas por hora apenas respondeu do grupo e de toda a desilusão que eles haviam causado, perguntando ao fim, se era mesmo verdade aquilo tudo, queria ver se realmente não valeria a pena viver. O viajante, ao ver o relato da sombra, fez a feição mais paciente que ela já vira, e como que um pai ensinando seu filho como se diz uma palavra corretamente, destrinchou para a sombra como seria a vida: ‘’imagine uma tela em branco,pronto para ser pintada, e uma aquarela com toda a miscelânea de cores que possa imaginar, eis a vida, você é livre para pintar seu quadro da maneira que quiser, porém haverá sempre o quadro das outras pessoas e estará exposto a comparações a todo o tempo, há de encontrar desde o mais diferente até um quadro quase igual ao seu. A vida tem sua beleza nesse mistério, nesse imponderável que é a possibilidade infinita de escolhas, e claro que sendo misteriosa desse jeito, o que há de melhor também pode estar escondido a primeira vista, e nisso ela é interpretada erroneamente por algum erro qualquer, as pessoas desistem muito fácil, desconsidere a interpretação dos meus amigos,eles não puderam enxergar tudo de bom que a vida pode nos reservar’’
A sombra assistiu todo aquele discurso encantada, e sentiu-se ansiosa como nunca para provar dos sabores e dissabores da vida, a empolgação era tanta que nem quis perguntar mais nada ao viajante, e agradeceu-lhe por tudo aquilo, partindo espontaneamente rumo a seu destino inicial. O viajante mostrou-se feliz por ter ajudado aquela sombra e preparou-se para ir ao encontro do grupo de viajantes desiludidos.
O caminho parecia reluzir a frente, uma pitada de todas emoções juntas com uma dose a mais de ansiedade, assim estava o interior da sombra, que após dar alguns passos nesse estado, de repente, como que de maneira súbita lembrou-se da ainda presença do viajante e lhe disparou: ‘’O que me aconselha fazer assim que chegue por lá?’’. O viajante,já indo em direção ao grupo anterior, parou e voltou-se pela última vez para a sombra após ouvir sua pergunta, e demonstrando uma certeza e uma simplicidade que convenceria o maior dos céticos, a disse: ''Ame.''