sábado, 8 de setembro de 2012

      A orla de Copacabana nunca passara tão despercebida à Maria dos Lenços. Sua costumeira tranquilidade nos passos a fim de desfrutar das belezas naturais do nobre bairro carioca fora rompida. A imagem causou estranheza. O cordão e as pulseiras de ouro e o anel com diamante reluzindo sob um sol escaldante, ao mesmo tempo em que movimentavam-se freneticamente, não era uma cena vista todo dia. Maria era conhecida no bairro, porém talvez mais conhecidos eram seus costumes elitistas. ''Ando vagarosamente para demonstrar não ser parte desses que precisam ir e vir para bater ponto, é uma questão de status'' - ela sempre dizia. Vê-la correr - isso mesmo, correr! Em pleno horário de rush se tratava de algo inimaginável.
     Ao menos um costume se manteve: a rota traçada. Maria se aproximou do restaurante francês com vista para a praia a que sempre visitava. No entanto, não chegava com um de seus carros de luxo como ocorria comumente. Para o espanto dos funcionários, das amigas que lhe aguardavam e do desgosto da própria Maria, esta havia chegado a pé. O restaurante, frequentado apenas por negros, centrou todas as suas atenções naquela figura atônita e ofegante; apesar da maneira que chegara, logo percebeu-se que suas vestimentas e sua cor estavam de acordo com os clientes que ali frequentam.
     Se dirigiu rapidamente para as duas mulheres - ambas negras, como era de se esperar- já vociferando o desastre que acontecera.
     - É o caos! O caos! Acabo de perder todo o dinheiro, irei a falência.
     - Maria, como pode ser possível? e a empresa, a casa, as ações? - pergunta uma das duas amigas, Maria dos Bancos, quase branca tamanha sua incredulidade.
     - Tudo se foi, eu depositei confiança demais naquele... naquele degenerado - diz como se não acreditasse no que acabara de falar.
     - E quem seria esse sujeito?
     - O empregado! O branco, o europeu! nós o tiramos da favela para lhe dar emprego e assim que ele retribui... Ele obteve meus dados e retirou todo o meu dinheiro!
     As amigas entreolharam-se demonstrando um sorriso discreto, desapontadas com o excesso de bondade da amiga. Viram que precisavam ser duras com ela.
     - Maria dos Lenços, parece que esquece quem somos - afirma taxativa Maria da Seda, sua sócia até então. Nós estamos na mais alta classe da sociedade, precisamos ser frias para dominá-la. Nós, mulheres, negras, mandamos na família e comandamos os negócios, não podemos dar espaço para esses branquinhos meliantes. Caridade só nos serve como forma de lucro minha querida, como pôde dar seus dados a este empregado?
     - Não sei, é tudo por culpa do meu marido. Vocês o conhecem, é um idealista. Crê na igualdade de gênero e de raça. Eu penso feito vocês, por mim isso nunca aconteceria...
     - Comunistas! - bradou Maria dos Bancos indignada - Eis o que são! Não merecem participar do seleto grupo que compomos. Veja só, uma industrial casada com um idealista que insiste que os homens não devem ser submissos a nós, mulheres! Pior, uma industrial que admira esse parceiro que vive tentando desconstruir o mito da democracia racial que nós, com muito empenho e habilidade, repassamos a toda a sociedade. Se dependesse de você Maria, estariam sentados aqui brancos e negros, na mesma proporção. Você é igual a ele!
     - Não é verdade! Por favor, escutem - diz rogando às Marias - , admiro sim essa crença do meu marido, mas, vejam, é uma criança apenas, vivendo de sua utopia. Imaginem se eu, Maria dos lenços, iria apoiar tamanha insensatez. Vejo beleza em sua inocência, não acredito que há o que temer. Nós nunca permitiríamos as mudanças que ele tanto deseja.
     Por um momento, o silêncio persiste. Realçando as expressões amargas de desaprovação e intransigência de Maria dos Bancos e Maria da Seda. Sem demonstrar interesse e de maneira impaciente, Maria dos Bancos decide quebrar o silêncio, já buscando finalizar aquela reunião lamentável.
     - Então me deixe adivinhar: diante deste desastre você convoca sua soberana e sua sócia para tentar comovê-las e retomar sua produção de lenços. Sinto muito, mas... - é interrompida por Maria dos Lenços.
     - Dos Bancos, tente avaliar, aceito empréstimo sob quaisquer juros, possuo muitos bens. Não lhe trarei prejuízos, garanto. E da Seda, somos sócias, há muitos favores que fizemos uma para a outra, peço-lhe apenas uma retribuição.
     As duas balançam a cabeça negativamente. Como que se divertissem e já contassem com o desastre da ex- amiga. Enquanto que, ao mesmo tempo, um carro de luxo para em frente ao restaurante. Era a deixa para que Maria dos Bancos finalizasse aquela reunião.
     - Você não entende. Você não está do nosso lado. É uma aberração como industrial. Uma traidora da classe! Sinto muito Maria dos Lenços, mas claramente não é digna de nossa posição, merece ser substituída. E é o que irá acontecer agora.
     Sem dar tempo para Maria dos lenços conceber uma resposta, dos Bancos volta a falar imediatamente:
     - Por favor, garçom, retire esta senhora de minha mesa. E, também, encaminhe o homem que acaba de entrar para ocupar este assento.
     O garçom, negro, assim que avistou o homem em questão, a olhou assutado. Após algum tempo de introspecção virou-se para ela dizendo:
     - Mas... madame, tem certeza? ele... você sabe, é branco - questiona incrédulo.
     - Tenho sim, não é um branco qualquer rapaz. Primeiro tire essa senhora - aponta para Maria dos Lenços -, depois Atenda-o e encaminhe para cá.
     Dos Lenços resiste, sabe que toda a sua vida irá mudar no momento em que for retirada daquela cadeira. Sua tristeza, não obstante, passou a ser acompanhada por uma visão inesperada.
     - É ele! É ele! - bradou insistentemente, como se não acreditasse- O empregado, que me assaltou! Como ousa estar aqui? Irá devolver toda minha fortuna... - sua fala é abruptamente interrompida por um segurança do restaurante que a retira da cadeira.
     - Você, - diz Maria da Seda apontando para o ex-empregado- sente-se aqui, temos muito o que tratar. Já tem um nome?
     - Não, não senhora - diz enquanto senta-se na cadeira -, sentar nesta cadeira era tudo o que queria. De resto, a Maria dos Bancos pode escolher.
     - É bom que seja assim- diz dos Bancos satisfeita. Incrível! Vem da favela, é branco e mostra-se mais consciente que a antiga dona dos lenços. Chega a nos fazer acreditar na democracia racial hein? - todos riem. Seu nome não será problema, chama-se agora João dos lenços. Satisfeito?
     - Muitíssimo, é um nome de muito bom gosto, só espero agora ser um bom súdito.
     Ao fundo, ex-Maria dos Lenços anda de um lado para o outro, insatisfeita com a situação.
     - Ei, vocês não podem aceitar isso! É um branco, um ladrão. Não merece essas regalias. Sua aceitação será o início da perdição de vocês!
     - Silêncio! ex-Maria dos Lenços, este restaurante não é seu lugar mais - diz aborrecida das Sedas. Está do outro lado agora, vá se juntar ao seu idealista. Temos um negócio a tratar. João dos lenços e eu pretendemos ser sócios, se nos dá licença...
     - É exatamente o que farei, - diz ex- dos lenços, tomada de raiva - mas não se espantem se esta iniciativa de hoje, justamente esta situação infeliz que promovem, do homem branco sentado de igual para igual com vocês, desencadeie o fim de toda a submissão deles. Estão possibilitando a igualdade de mulheres e homens! De brancos sendo iguais ao negros! Não se espantem se um dia os homens e os brancos passem a dominar a sociedade, não sabem o que fazem...
     Sua declaração provocou, imediatamente, uma gargalhada geral no restaurante, que perdurou mesmo depois de ex-dos Lenços partir em retirada, sabendo que nunca mais voltaria àquela cadeira. Terminada a gargalhada, todos voltaram ao ritmo normal. Antes de dar prosseguimento aos negócios, Maria dos Bancos ainda comentou:
     - Veja só! Homens dominando a família e brancos dominando as classes altas da sociedade. É uma desvairada, claramente não poderia continuar entre nós. Não acham?
     - Certamente dos Bancos, certamente... –disseram da Seda e João com absoluta tranquilidade e certeza.  

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